por Franssinete Florenzano

Amanhã, às 11h, no auditório da OAB em Brasília, será entregue oficialmente o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Já se sabe que serão apresentadas 29 recomendações, entre elas a de que todos os nomes de obras públicas do País que sejam de pessoas ligadas à tortura e aos desaparecimentos durante a ditadura, além dos presidentes da República militares, devem ser alterados. Outra, no sentido da alteração dos currículos das academias militares e extinção da justiça militar em cada Estado da Federação.

Mas a mais polêmica sem dúvida é a de que os agentes do regime que participaram de tortura respondam judicialmente por seus crimes, o que entra em choque com a Lei da Anistia mas encontra eco no que vem sendo defendido há anos pelo Ministério Público Federal do Pará.

Das três ações penais movidas no Brasil pelo Ministério Público Federal contra militares envolvidos em crimes contra a Humanidade e graves violações a direitos humanos durante a violenta repressão à guerrilha do Araguaia, duas tramitam no Pará e os denunciados são Sebastião Curió e Lício Augusto Maciel.

Lício Augusto Maciel é Major da reserva e usava na época o codinome “Doutor Asdrúbal”. Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o Major Curió, coronel da reserva do Exército, é tido como o líder do extermínio na Guerrilha do Araguaia.

Curió é personagem emblemático da ditadura militar e o único capaz de identificar o local onde os corpos dos militantes do PC do B capturados na guerrilha do Araguaia foram enterrados. Ele se recusou a depor perante a Comissão Nacional da Verdade. Na região onde Curió atuou, especialmente nos municípios de São Domingos do Araguaia, São Geraldo do Araguaia, Brejo Grande do Araguaia, Palestina do Pará, Xambioá(TO) e Araguatins(TO), as Forças Armadas organizaram ações de repressão que foram verdadeiro massacre. Não há notícia de um só militante que, preso durante a chamada Operação Marajoara, tenha sido encontrado vivo.

No território parauara, cerca de 350 pessoas foram executadas na região, na primeira metade da década de 1970. A antiga ‘Casa Azul’, em Marabá, foi um dos centros de prisões, torturas e assassinatos de presos políticos.

Em setembro deste ano, o MPF-PA recorreu ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal a fim de manter a ação penal contra o Major Curió, que conseguiu habeas corpus do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Curió é acusado de sequestrar e manter em cárcere privado cinco militantes, até hoje desaparecidos, durante a repressão à guerrilha do Araguaia, na década de 1970. No início de 2014, a Procuradoria Regional da República da 1ª Região já havia recorrido ao TRF1 da decisão, alegando que o acórdão deixou de considerar precedentes do STF sobre a não aplicação da Lei de Anistia aos casos de sequestro e cárcere privado. Mas o tribunal rejeitou os embargos de declaração. A PRR1 pede, atualmente, em recurso especial e em outro extraordinário, que o caso seja analisado pelo STJ e pelo STF.

A questão é que, embora tenham se passado mais de trinta anos do crime, as vítimas até hoje não apareceram, e nem os corpos, o que impede que seja sequer cogitada hipótese de homicídio. Trata-se – inclusive nos termos da jurisprudência do STF – de crime de sequestro, delito permanente, razão pela qual não há que se falar em prescrição.

Em dois casos de extradição de militares ligados a ditaduras latino-americanas, o STF decidiu que a extradição deveria acontecer por se tratarem de casos de desaparecimento forçado, que o direito internacional considera como violações graves de direitos humanos sobre as quais não se aplica anistia ou nenhuma disposição análoga, seja prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada ou qualquer excludente similar.

É por isso que os procuradores da República defendem que a decisão deve ser reformada, no que tange aos delitos considerados prescritos e abrangidos pela Lei da Anistia, já que a anistia e a prescrição, ainda que aplicáveis fossem ao caso, não podem ser aplicadas, nem mesmo em tese, a crimes que, por sua natureza de delitos contra a Humanidade, praticados por agentes de Estado durante regimes de exceção, são imprescritíveis e insuscetíveis de auto-anistia, isto com base na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, e que estabelece a obrigação da persecução criminal dos fatos relacionados à guerrilha do Araguaia.

Especialmente nos casos de sequestro, além da perpetração de sevícias às vítimas para obter informação sobre o paradeiro dos demais dissidentes (tortura), seguiram-se atos de ocultação das condutas anteriores visando assegurar a impunidade e manter o sigilo sobre as violações a direitos humanos. Ou seja, ao sequestro clandestino segue a negativa estatal de sua própria ocorrência”, relatam na denúncia os procuradores da República Tiago Modesto Rabelo, André Casagrande Raupp, Melina Alves Tostes e Luana Vargas Macedo, de Marabá; Ubiratan Cazetta e Felício Pontes Jr., de Belém; Ivan Cláudio Marx, de Uruguaiana; Andrey Borges de Mendonça, de Santos; e Sergio Gardenghi Suiama e Marlon Alberto Weichert, de São Paulo.

Tanto que a juíza federal Solange Salgado, em sentença em fins de 2007, determinou à União localizar, identificar e esclarecer em que condições ocorreram os desaparecimentos e mortes. Foi quando o governo federal, para cumprir a decisão judicial, criou o Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), do Ministério da Defesa que, entre 2009 e 2010, percorreu a região realizando diversas escavações, com resultados pífios. Em dois anos, uma só ossada foi localizada, na região do Tabocão, em Brejo Grande do Araguaia (PA).

Depois foi criado o Grupo de Trabalho Araguaia, que entre 2011 e 2012 exumou 14 ossadas, nos cemitérios de Xambioá (TO) e São Geraldo do Araguaia (PA) e há expectativa de que sejam encontrados outros tantos desaparecidos políticos num dos mais importantes sítios mortuários de Marabá (PA), inclusive indicados por antigos colaboradores da repressão.

Os testemunhos que constam no relatório da Comissão Nacional da Verdade – que absorveu o relatório da Fenaj e do Sindicato dos Jornalistas do Pará-  expõem o horror de um ciclo da História do Brasil na qual o Pará teve papel relevante, e que precisa ser documentado, e as investigações têm que continuar. Ainda há muito o que desvendar.

A Comissão Estadual da Verdade do Pará vai discutir, na próxima reunião, o teor do relatório da Comissão Nacional da Verdade e que providências deve tomar para implantar as decisões. Se assim decidido, listará as escolas, bancos, presídios, praças e demais logradouros que se enquadrem na situação descrita pela CNV, podendo oferecer através do deputado Carlos Bordalo, que é membro da Comissão, projeto de lei alterando os nomes.

Já existe uma lista, levantada pelo historiador João Lúcio Mazzini, membro titular da Comissão da Verdade do Pará, com mais de trezentos nomes de pessoas, assuntos e prontuários até 1968, obtidos junto ao Arquivo Nacional, na representação regional de Brasília, além das conclusões da Comissão de Inquérito Sumário que cassou o ex-governador Aurélio do Carmo e os outros incriminados em junho de 1964.

Na oitiva de Aurélio do Carmo pela Comissão Estadual da Verdade, questionado acerca de quem era titular do Departamento de Ordem Política e Social(DOPS) e das informações sobre políticos, jornalistas, advogados, artistas, servidores públicos e trabalhadores em geral, ele disse que foi delegado mas, enquanto exerceu a função, nunca abriu o prontuário de dezenas de pessoas que estavam ali registradas. Especula-se que o material tenha servido para a formação das fichas da temida Segunda Seção do Estado-Maior do Exército, pois ninguém sabe – ou não quer informar – onde está o acervo do DOPS.

Uma das dificuldades encontradas pela Comissão é relativa à questão indígena. Nas oitivas deverão ser convidados também servidores estaduais que tinham cargo de confiança e os de carreira atingidos pelo regime de exceção. A Comissão pretende, ainda, apresentar ao governador Simão Jatene um relatório do que já está feito neste curto espaço de tempo de funcionamento da Comissão, instalada em 1º de setembro de 2014.

Integram a Comissão Estadual da Verdade do Pará Egydio Salles(OAB-PA), presidente; João Lúcio Mazzini da Costa(Arquivo Público), Marco Apollo Leão(SDDH), Paulo Fonteles Filho (Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça), Renato Marques Neto(Sejudh), Ana Michelle Gonçalves Zagalo(Segup), deputado Carlos Bordalo (Alepa), Franssinete Florenzano (Sinjor-PA) e Jureuda Duarte Guerra (Conselho Regional de Psicologia-PA/AP). É a única Comissão Estadual da Verdade em todo o País a ter entre seus membros titulares uma jornalista, representando o Sindicato da categoria.

FONTE: http://uruatapera.blogspot.com/2014/12/o-relatorio-da-comissao-da-verdade.html